Paulo Lott: sem perder a ternura jamais

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Toda pessoa constrói ao longo de sua vida aquilo que é sua característica mais marcante; sua marca registrada. A do jornalista Paulo Lott, que recentemente nos deixou, era a capacidade de dialogar, de tentar harmonizar cabeças que pensavam de forma às vezes diametralmente opostas. Na presidência do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais (SJPMG), entre agosto de 1980 e junho de 1981, ele fez isso com muita maestria, já que a diretoria da instituição, composta por mais de duas dezenas de pessoas, não era um bloco uníssono de pensamento. E, em várias ocasiões, a diversidade de ideias exigia que alguém entrasse em cena e buscasse um mínimo de entendimento.

A jornalista Jane Medeiros, que foi colega de gestão de Paulo Lott, recorda-se muito bem desses momentos. “Me lembro bem de sua imagem: alto, forte, de braços cruzados, olhando firmemente para a pessoa e ouvindo tudo, atentamente. Depois, dava um tapinha nas costas da pessoa e sempre procurava contemporizar, aparar as arestas”, afirma Jane Medeiros. Ela diz que, às vezes, a postura dele era meio irritante, porque dava a impressão de que estava em cima do muro. Mas não era. “No fundo, era pura sabedoria, para tentar harmonizar cabeças diferentes dos nossos militantes sindicais”, ressalta Jane Medeiros.

Ser a voz da ponderação era importante na gestão de um sindicato como o dos jornalistas, por uma razão muito simples: como o cenário político era tenso, nele não havia espaço para um sindicato dos jornalistas dividido. No início dos anos de 1980, no governo do general João Baptista de Figueiredo, o país vivia os estertores de uma ditadura que, a todo momento, tentava reviver seus momentos de poder absoluto.

Fez isso, por exemplo, em setembro de 1980, quando tentou punir os jornalistas que reproduziram o texto de um manifesto contra a ditadura divulgado pelo PcdoB durante o desfile de 7 de setembro daquele ano. O manifesto pregava a independência nacional em relação ao capital estrangeiro, denunciava as condições precárias dos operários camponeses e pequenos produtores, da educação e da saúde; e pedia a realização de uma Assembleia Nacional Constituinte livremente eleita, além, obviamente, do fim da ditadura militar.

Lott presidiu o SJPMG entre agosto de 1980 e junho de 1981, em substituição a Washington Mello, que foi para a Fenaj

Os jornalistas que o divulgaram foram processados pela Justiça Militar com base na Lei de Segurança Nacional. A confusão começou na rádio Jornal do Brasil, de Belo Horizonte, que transformou o manifesto em uma notícia que foi ao ar e depois retransmitida para todo país pela Agência JB, uma das mais conceituadas na época e de grande penetração em todo o país.

Enquanto presidente do Sindicato dos Jornalistas de Minas à época, Paulo Lott dirigiu-se ao presidente do Jornal do Brasil, Manuel Francisco do Nascimento Brito, que o recebeu com cortesia, mas descartou qualquer possibilidade de atuar em defesa dos jornalistas que estavam sendo processados. Por uma razão muito simples, que ele fez questão de mostrar ao abrir a porta de um estúdio de televisão que estava pronto para começar a ser operado. Era o estúdio da TV JB, cuja concessão o Jornal do Brasil estava aguardando sair para poder entrar na área de televisão.

Resultado prático da divulgação da notícia: seis jornalistas processados pela Lei de Segurança Nacional por “atividades subversivas” e “proselitismo político”, com penas previstas de um a 12 anos de prisão. Os jornalistas processados foram Jurani Garcia, Rosângela Conrado e Hugo Almeida, da rádio Jornal do Brasil; Gutemberg da Mota e Silva, da sucursal do Jornal do Brasil em Belo Horizonte; e Samuelito Mares e Márcio Dotti, da rádio Itatiaia.

Em depoimento ao livro sobre os 70 anos do Sindicato dos Jornalistas de Minas, Paulo Lott revela um episódio curioso que viveu na expectativa de livrar os jornalistas do processo. Ele recebeu um telefonema de um colega da diretoria do Sindicato dos Jornalistas de Juiz de Fora dando conta de que um procurador da Justiça Militar queria conversar sobre o assunto. Para Juiz de Fora foram ele e o presidente da Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), Washington Mello.

Chegando ao local combinado, veio a proposta do procurador, que queria um determinado valor para livrar os jornalistas do processo. Paulo Lott e Washington Mello descartaram a proposta. Com isso, o processo continuou caminhando. A denúncia foi recebida pela Conselho Permanente de Justiça da Aeronáutica, sediado em Juiz de Fora, e nada garantia que os jornalistas seriam absolvidos. Só acabou ocorrendo o contrário e todos foram todos absolvidos, por unanimidade em um julgamento que durou nove horas e contou com o voto favorável inclusive de um coronel do Exército e presidente do Conselho.

“Se o governo militar queria apenas dar um recado, o recado não foi recebido, pois por todos os cantos do país começaram a surgir pequenas e grandes resistências, e o resto da história todos conhecem”, afirmou Paulo Lott na publicação do Sindicato dos Jornalistas de Minas. Segundo seu filho, Paulo Tadeu, a notícia da absolvição dos colegas deixou Paulo Lott eufórico. “Este foi o momento de maior alegria de papai em toda a sua vida. Foi a sensação do dever cumprido e da justiça feita”, afirmou Paulo Tadeu.

Jurani Garcia recorda-se que durante todo o processo, até o desfecho, o grupo foi devidamente acolhido e amparado por Paulo Lott. “Desde o início, ele se mostrou inteiramente solidário e se dispôs a nos ajudar no que fosse possível. Como presidente do Sindicato, contratou logo um advogado para nos defender, acompanhou os depoimentos, reunia-se conosco e procurava transmitir-nos confiança e otimismo. Deu-nos o apoio efetivo de que precisávamos e o apoio afetivo, também fundamental para nós, o que era muito próprio dele. Suas palavras sensatas, seu ombro amigo e seu sorriso largo nos deram ânimo e força para tocar o barco”, afirmou Jurani Garcia.

O jornalismo entra em cena

Paulo Lott nasceu em 30 de junho de 1933, em Guanhães, na região Central de Minas. Lá, estudou até o fim do antigo curso Ginasial, equivalente hoje ao 9º ano do Ensino Fundamental. Em 1949, veio para Belo Horizonte, onde, no Colégio Marconi, fez o antigo curso Científico, equivalente hoje ao Ensino Médio. Aos 18 anos, começou a trabalhar como escrevente serventuário no Fórum Lafayette, até aposentar-se, em 1985, após 35 anos de serviços prestados ao Judiciário.

O jornalismo entrou em sua vida no início dos anos de 1970, em função da proximidade do Forum Lafayette com o jornal Estado de Minas, na época, o de maior circulação no Estado. Ambos – o fórum e o jornal – ficavam na mesma rua, a rua Goiás, a uma distância de pouco mais de cem metros um do outro. Enquanto escrevente, Paulo Lott acabou fazendo amizade com vários jornalistas que cobriam os julgamentos. O resultado foi o convite para que passasse a integrar a equipe de repórteres da editoria de Polícia do jornal. “Ele fazia uma espécie de elo entre as notícias do fórum e as do jornal”, afirmou seu filho, Paulo Tadeu.

A entrada do jornalismo em sua vida, o levou, aos quase 40 anos de idade, de volta aos bancos escolares. La foi Paulo Lott fazer o curso de Jornalismo na PUC Minas. Era o decano em uma turma formada apenas por jovens futuros jornalistas. Como já estava estabelecido na vida, Paulo Lott já tinha carro particular, um Galaxie dourado, um veículo padrão luxo que acomodava com conforto sete pessoas – quatro no banco de trás e três no da frente, já que, na época, não havia, como hoje, o banco individual dianteiro. “Paulo colocava seus colegas de turma apertados e deixava cada um em sua casa. Era um anjo protetor”, recorda-se o jornalista e, na época, seu colega de turma, Fernando Miranda.

A prática da carona aos colegas de faculdade foi mantida também quando Paulo Lott tornou-se professor na mesma PUC onde havia se formado quase uma década antes. Sueli Cotta, que foi sua aluna na disciplina jornalismo impresso, conta que ele, ao oferecer a carona, sempre dizia que não era muito seguro andar sozinho à noite. “Ele era uma pessoa muito educada e gentil. Já praticava a gentiliza urbana muito antes de ela se tornar moda”, afirma Sueli Cotta.

O Galaxie foi um personagem também citado pelo jornalista Arnaldo Viana, de quem Lott era colega no Estado de Minas. Nos anos de 1970, em plena ditadura, Viana estava ameaçado de morte pelos policiais que integravam o Esquadrão da Morte, grupo de policiais que, à margem da lei, matavam pessoas que consideravam criminosas. Vendo o receio de Arnaldo Viana de cortar o centro da cidade à noite até o ponto de ônibus, Paulo Lott ofereceu-se para levá-lo, no Dodge, até o local. Como seu carro era um veículo luxuoso, Viana pergunta-lhe, no trajeto até o ponto de ônibus:

– Paulo, e se o povo se revoltar e atacar, virar e botar fogo no carro, acreditando que ele representa um objeto de poder da elite opressora?

A resposta o surpreendeu:

– A gente desce e ajuda a botar fogo.

A resposta, segundo Arnaldo Viana, o fez sentir uma segurança que nunca havia experimentado antes.

Paulo Lott, o segundo da esquerda para a direita, em debate na TV Minas, nos anos de 1980

Batalhador pela democracia

Ao mesmo tempo em que tinha esse lado da generosidade, da escuta, Paulo Lott era um batalhador ferrenho pelas causas democráticas. Dois episódios ilustram esse traço importante de sua atuação. O primeiro, em 1980, foi o episódio da bomba colocada na Casa do Jornalista, que explodiu quebrando o piso da entrada e estilhaçando vidros da janela lateral. A bomba também arrancou um pedaço da porta, que Paulo Lott levou para sua casa, onde mantinha uma oficina com um ferramental dos mais completos. Este era, segundo Paulo Tadeu, um hobby que seu pai tinha e que somente os mais próximos dele conheciam. “Papai era um engenheiro por natureza”, afirma seu filho.

Foi nessa oficina que, anos mais tarde, ele construiu um pedestal no qual assentou o pedaço da porta da Casa de Jornalista que havia sido arrancado pela bomba. O pequeno monumento à democracia ficou em seu poder até este ano, quando o entregou à então presidente do Sindicato, Alessandra Mello.

Paulo Lott, Alessandra Mello e Washington Mello e o pedestal com o pedaço da porta do SJPMG arrancado por uma bomba em 1980

Nos anos de 1980, ninguém foi preso pelo atentado, mas o Sindicato recebeu um ato de desagravo por parte do Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG). No livro sobre a história do Sindicato, Paulo Lott conta que ao receber a comenda da OAB, cumprimentou os presentes, indistintamente, até que um deles recusou o cumprimento. “Quando cheguei diante de uma figura do alto escalão da repressão, estiquei a mão e fiquei com o braço dependurado, enquanto ele permaneceu imóvel, olhando para cima. Foram não mais que dois a três segundos, que me pareceram horas”, contou Paulo Lott. Segundo ele, quem o salvou do constrangimento foi o advogado Ariosvaldo Campos Pires, que se adiantou, cumprimentou-me alegremente e, assim, eu pude chegar ao final da fila”, revelou Paulo Lott.

O segundo momento que ilustra a obstinação de Paulo Lott com a defesa das causas democráticas ocorreu quatro anos depois, em 1984, quando o Sindicato dos Jornalistas se transformou em uma das trincheiras da campanha pela volta das eleições diretas para presidente da República. Na época, Paulo Lott era superintendente do Trabalho na secretaria do Trabalho de Minas, cujo governador era Tancredo Neves. Na época, o titular da secretaria era Ronan Tito, que integrava a chamada ala progressista do PMDB.

Em depoimento ao livro sobre a história do Sindicato, Paulo Lott conta que, com seu apoio, Ronan Tito conseguiu que o Sindicato fosse o responsável pelas tarefas de divulgação da campanha. “O Sindicato virou o endereço principal das Diretas-Já em Belo Horizonte e todas as suas salas estavam ocupadas por pessoas que nem se conheciam e por abundante material de propaganda que chegava a toda hora”, afirmou.

A essa altura, Paulo Lott era, mais que um jornalista no exercício da profissão, um militante das causas democráticas. Essa militância foi o que o levou para a vitoriosa campanha do petista Patrus Ananias à prefeitura de Belo Horizonte, em 1993. Dele, o jornalista José Amaro Siqueira, o Zinho, guarda boas lembranças. “Eu tocava a comunicação e Paulo foi meu vizinho, no Cerimonial da Prefeitura”, afirma Zinho, que se recorda, com satisfação, do trabalho que a primeira gestão de esquerda à frente da PBH fez.

Entre as principais realizações, ele destaca o Orçamento Participativo e o Restaurante Popular. Como integrante da equipe, Paulo Lott era, segundo ele, uma figura ímpar. “Eficiente, paciente, inteligente, companheiro. Posso passar o dia a listar suas qualidades. Mas o que me impressionava mais era sua gentiliza combinada com uma firmeza elegante”, descreve José Amaro Siqueira.

Em 1996, Patrus Ananias abriu caminho para que seu vice, Célio de Castro, concorresse ao cargo. Com ele, na campanha, trabalhou o jornalista e ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Minas, Manoel Guimarães. Segundo ele, Paulo Lott foi peça fundamental para a eleição de Célio de Castro. Isto porque o partido de Célio, o PSB, tinha um tempo muito reduzido na propaganda eleitoral. Ciente disso, Paulo Lott articulou o apoio de seu partido, o PMDB, à sua candidatura.

Com isso, o tempo de propaganda de Célio de Castro aumentou consideravelmente, contribuindo, segundo Manoel Guimarães, para que Célio de Castro fosse eleito prefeito. Na gestão de Célio, Paulo Lott foi secretário de Governo. Segundo o jornalista Maurício Lara, que chefiava a Comunicação da prefeitura, Paulo Lott manteve uma postura que ele considerou “admirável” no cargo e no relacionamento com os colegas jornalistas.

Os problemas na saúde

Do ponto de vista de sua saúde, tudo ia bem até janeiro de 2020, pouco antes da pandemia. Naquele mês, ele foi vítima de uma infecção urinária que quase o levou à morte. Da infecção ele se recuperou, mas segundo Paulo Tadeu, não voltou ao que era antes. “Quando chegou em casa, percebi que ele tinha mudado. Mudou a caminhada. Ele voltou mais frágil, com um andar meio claudicante e uma fala meio arrastada”.

Seis meses depois, Paulo Lott sofreu outro baque: em agosto, sua esposa foi diagnosticada com câncer no fígado e dois meses depois, faleceu. Em julho de 2021, outro baque: um AVC severo que o impediu de caminhar. Com isso, passou a se locomover somente por cadeira de rodas e a ter infecções urinarias uma atrás da outra e ter que urinar por meio de sonda. “Aí nos compreendemos que sua vida estava caminhando para o desenlace”, afirmou Paulo Tadeu. Segundo ele, o pai nunca se queixou da sonda, mas, de vez em quando, chorava.

Nos últimos anos, Paulo Lott teve problemas de saúde agravados por um AVC sofrido em 2021

Paulo Lott faleceu no último dia 12 de novembro, um domingo. Tão logo a notícia chegou às redes sociais, foram centenas os depoimentos elogiosos à sua trajetória. “Ele honrou o jornalismo”, afirmou o jornalista Nestor Oliveira. “Uma grande perda”, destacou o também jornalista Fernando Lacerda. “Além de toda cortesia e afetividade no trato com os companheiros, ele apoiava com vigor os que estavam começando na profissão”, afirmou Carlos Barroso, presidente da Casa de Jornalista.

Há algum tempo, Paulo Lott tinha consciência de que sua missão já estava, de certa forma cumprida. Nos anos de 1990, já beirando os 70 anos de idade, ele era secretário de Governo de Célio de Castro. Maurício Lara, que chefiava a Comunicação da Prefeitura, revela um episódio que, de certa forma, ilustra isso. Ele conta que, certa ocasião, havia um grupo de jornalistas aguardando o prefeito Célio de Castro para uma entrevista coletiva. Paulo Lott dirigiu-se a estes jornalistas e deu-lhes como que uma missão a ser por eles cumprida:

– Agora consertar esse país é com vocês. A minha geração não deu conta.

O velório de Paulo Lott foi na Casa de Jornalista. Lina Rocha, presidente do Sindicato, em saudação aos presentes, disse que era uma honra o Sindicato abrir suas portas para a despedida de uma personalidade tão respeitada e querida pelo jornalismo mineiro. “Paulo Lott tem uma trajetória rica e profundamente ligada ao jornalismo, ao sindicato e à militância. Um legado de luta e ética deixado como exemplo”, ressaltou Lina Rocha.

Seu filho conta que há algum tempo, ele preparou um texto com orientações para serem seguidas após sua morte. Uma das diretrizes era que não houvesse velório, que acabou não sendo possível de ser cumprida tal o número de pessoas que desejavam se despedir dele tão logo souberam de seu falecimento. O velório lotou a Casa de Jornalista e foi meio que uma homenagem a alguém que honrou sua trajetória. Não foi um velório marcado pela tristeza.

Paulo Tadeu aposta que se o pai, em vida, imaginasse que o clima seria aquele, teria topado o velório.

Paulo Lott (30 de junho de 1933 – 12 de novembro de 20230

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