Carlos Eduardo Cherem e o último batismo de fogo

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Todo jornalista que começa a trabalhar em redação costuma ter seu batismo de fogo. Muitas vezes é uma pauta de apuração complexa que o editor lhe passa exatamente para testar sua capacidade de produção, seja pelo prazo muito curto; seja pela complexidade do tema. O batismo de fogo do jornalista Carlos Eduardo Cherem foi apanhar da polícia em um protesto de rua. Cherem não tinha nem um ano de formado. Era repórter de economia do jornal “Diário da Tarde” e foi pautado, em setembro de 1993, para cobrir o leilão de privatização da siderúrgica Açominas.

O leilão foi realizado em Belo Horizonte, na extinta Bolsa de Valores Minas-Espírito Santo-Brasília (Bovmesb), que ficava na rua Caetés, no centro da capital. Na época, os trabalhadores da siderúrgica não concordavam com a privatização da empresa e foram para a porta da Bovmesb. Para lá também foi a polícia, a fim de garantir a realização do leilão de privatização. Só que, em dado momento, o protesto acabou em confusão. No meio da confusão, estava o jovem repórter Carlos Eduardo Cherem, que acabou apanhando muito e voltou para a redação ensanguentado.

Esse episódio foi há exatos 30 anos. No intervalo entre o leilão de privatização da Açominas e o último dia 23 de outubro, Cherem passou, diariamente, por inúmeros outros batismos de fogo. Depois do “Diário da Tarde”, ele trabalhou nos jornais “Estado de Minas”, “Valor Econômico”, “Gazeta Mercantil”, “O Estado de São Paulo” e no portal Uol. Seu último batismo de fogo ele travou contra si próprio: o câncer que não conseguiu vencer e que o levou há duas semanas.

Filho do ex-deputado estadual José Marcus Cherem e de Mary Loes Cherem, ele era também sociólogo e autor de livro. Em 2017, publicou “Peirópolis: o vale do dinossauros brasileiros”, sobre o distrito de Uberaba, onde nasceu, e que era famoso pelas descobertas paleontológicas. Deixa o filho Carlos Eduardo Araújo Cherem, de 23 anos.

Em 1995, quando o jornalismo econômico estava em alta devido ao sucesso do Plano Real, de um ano antes, Cherem e dois outros jornalistas – Guilherme Aragão e Ricardo Bandeira – mantinham uma empresa de prestação de serviços na área de comunicação, a Parla. Nessa época, fizeram assessoria para o Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças (Ibef), o jornal do condomínio do Edifício JK, no centro de Belo Horizonte, e tentaram emplacar um jornal de bairro, no Santo Antônio. “Era o Brasil pós-real e respirava-se jornalismo econômico”, afirma Guilherme Aragão. Segundo ele, embora fosse tão verde em jornalismo quanto os dois outros sócios, Cherem garantia alguma credibilidade à jovem empresa, que não durou muito tempo. Anos depois, ele  e Guilherme Aragão voltariam a trabalhar juntos, como repórteres do “Estado de Minas”.

A notícia de sua morte abalou Ivana Moreira, com quem não tinha contato há algum tempo. “Deu muitas saudades do Cherem, das conversas que tivemos sobre tudo e sobre nada. O Cherem foi um dos melhores repórteres de nossa turma, fiel ao ofício até o fim. Foi um dos sujeitos mais bravos e, ao mesmo tempo, mais doces que conheci”, afirma Ivana Moreira, em publicação feita em uma rede social.

Braveza a serviço da notícia

Da “braveza” de Carlos Eduardo Cherem, Ricardo Bandeira recorda-se muito bem. “Ele desafinava o coro dos contentes. Incomodava os acomodados. Era assim nas entrevistas coletivas. Naquele burburinho, sua voz era uma arma poderosa para se fazer notado e para incomodar autoridades de todo tipo”, afirma Bandeira, que também foi seu colega no “Estado de Minas”. Segundo ele, a voz alta e grave, a dicção peculiar, o jeito autêntico faziam com que fosse notado onde estivesse, com admiração ou estranheza. “Era impossível ser indiferente à sua figura”, afirma Bandeira. Segundo ele, algumas vezes, Cherem reclamava dessa sua característica peculiar. “Mas no fundo, acho que ele gostava”, acredita Bandeira, que foi colega dele também na faculdade.

Dos tempos de estudante, ele se recorda da série que fizeram sobre alguns dos bairros mais tradicionais de Belo Horizonte. “Saíamos os dois, de ônibus, cada vez em direção a um bairro diferente e passávamos horas circulando pelas ruas e conversando com comerciantes e transeuntes”, afirma Bandeira. A segunda etapa era a consulta aos arquivos públicos para completar a apuração. O terceiro e último passo era passar uma tarde inteira revezando no uso da máquina de escrever. Como o jornal laboratório do curso de comunicação da UFMG, o “Alternativa”, estava desativado, Cherem e Bandeira acabaram criando uma espécie de jornal laboratório próprio, cujas matérias chegariam a ser publicadas pelo jornal “Minas Gerais”, o diário oficial do Estado.

A jornalista Leida Reis, diretora da editora de livros “Literíssima”, também se recorda com carinho de Carlos Eduardo Cherem. Foi quando, enquanto repórter do portal UOL, ele a entrevistou sobre o relançamento do “Vossa Senhoria”, o menor jornal do mundo, que ela passou a editar. “Ele achou interessante e tratou o assunto com elevada importância. Nos contatos com Cherem, sempre o via como um jornalista comprometido, interessado e sério”, afirma Leida Reis.

Abriu portas

Quem também se recorda de Cherem é o jornalista Marcelo Freitas, com quem trabalhou no  “Estado de Minas”, no início dos anos 2000. Marcelo conta que depois que deixou o jornal, em 2004, somente voltou a ter contato com ele no início de 2020, quando decidiu escrever o livro “Nós também estivemos na linha de frente” sobre as histórias do jornalismo na cobertura da Covid-19.

Marcelo Freitas conta que precisava entrevistar algum repórter ou editor do jornal “Folha de S. Paulo”, mas não conhecia ninguém lá. Como sabia que Cherem era do portal UOL, que pertence ao mesmo grupo, recorreu a ele, que prontamente, faz a ponte que lhe garantiu a entrevista de que precisava na “Folha”. No livro, o nome de Carlos Eduardo Cherem está, ao lado de outros três jornalistas, entre aqueles que contribuíram para a produção do livro por terem aberto portas nos veículos de fora de Belo Horizonte. “Ele reconheceu a importância de mostrar como era o trabalho dos jornalistas durante a pandemia”, afirma Marcelo Freitas.

Carlos Eduardo Cherem: 2 de janeiro de 1958 – 23 de outubro de 2023

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