Como anda a sua relação com o jornalismo?

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ilustracao: cenário futurista em contraste com destaque de uma máquina de escrever manual - imagem gerada por IA
ilustracao: cenário futurista em contraste com destaque de uma máquina de escrever manual - imagem gerada por IA

Para o jornalista, a tecnologia e as mudanças do mercado de trabalho impactam a relação com o jornalismo. A revisão da realidade e das expectativas é essencial para a saúde mental dos trabalhadores

Carlos Plácido Teixeira
Jornalista | Produtor do site Radar do Futuro

Quando você, jornalista, se casou com o jornalismo, em uma cerimônia bem mais discreta do que aquela da sua amiga médica com a medicina, já existiam algumas dúvidas sobre as possibilidades de sucesso do seu relacionamento. Não havia dúvidas sobre o seu afeto. A sua admiração pela profissão é inquestionável.

Seu sonho era fazer parte da equipe de Caco Barcellos, o velho jornalista da Rede Globo. Fazer grandes reportagens pelo mundo. Ou mesmo ter a carteira assinada por um grande jornal de seu estado. Seus pais lamentavam que a escolha não tivesse sido o direito ou mesmo a engenharia.

Morando juntos desde o início, com um estágio aqui, outro ali, e mais alguns freelas, já era possível perceber que o jornalismo não entregava tudo o que prometia. Principalmente segurança financeira. E muito menos o charme de outros tempos.

Ao invés da produção de grandes matérias, furos de reportagem, descobertas de inovações ou viagens incríveis, seu relacionamento é marcado por rotinas. Um cotidiano de notícias sobre buracos nas ruas, alguns acidentes de carros, assaltos, notas sobre shows, o calor que fez e as chuvas previstas para os próximos dias. Nada de muito emocionante.

O que aconteceu?

Hoje, pessoas casadas com funções jornalísticas devem ficar frustradas ao saber que já houve épocas em que os principais grupos de nacionais e locais de comunicação investiam recursos financeiros e humanos na produção de reportagens. Repórteres, editores, fotógrafos e cinegrafistas tinham algum orgulho da profissão escolhida ao acreditar que integravam o “quarto poder”.

Por exemplo, a repórter Ângela ficou, durante meses, por conta da apuração de uma reportagem envolvendo “figurões” da política”. Um helicóptero foi alugado por uma revista para que o fotógrafo José Maria pudesse captar boas imagens de um acontecimento de importância mediana. E a Alessandra, acompanhada de fotógrafo e motorista, viajou pelo interior de Minas por vários dias para uma série de reportagens sobre uma bolha de crescimento da economia da região mais pobre do Estado.

Indicadores: estamos mais mentalmente doentes

Os dados sobre o comportamento das contratações e demissões confirmam a tendência de desalento, diante do esvaziamento das oportunidades de emprego, que abalam as relações entre jornalistas e o jornalismo. De acordo com um estudo elaborado pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) para a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), com base nos dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o mercado de trabalho formal para jornalistas no Brasil encolheu 21,3% no intervalo de nove anos.

Em números absolutos, a categoria saiu de 60.899 empregos celetistas, em 2013, para 47.900 postos com carteira assinada, em 2021, último ano da série histórica, evidenciando uma perda de 12.999 vagas.

O relacionamento entre trabalhadores da imprensa e a profissão será cada vez mais tenso, inseguro, instável e precário. O que já pode ser confirmado por uma pesquisa de 2020 da Federação Internacional dos Jornalistas em 2020, que identificou um aumento do estresse e da ansiedade entre os profissionais de imprensa brasileiros.

A tendência tem força global. Em Portugal, o “Inquérito Nacional às Condições de Vida e de Trabalho dos Jornalistas em Portugal”, elaborado pelo Sindicato dos Jornalistas, Casa da Imprensa e pela Associação Portuguesa de Imprensa ouviu 866 profissionais em maio de 2022. Perto de metade indica níveis de esgotamento elevado e 18% chegam a níveis muito elevados ou extremamente elevados.

O retrato da profissão é preocupante: “sobrecarga laboral, conflitos éticos, degradação da qualidade de trabalho, dificuldade de conciliação entre a vida profissional e a vida familiar, salários baixos”. O estudo registra os sinais de “precariedade laboral, insegurança material e risco estrutural”. É “uma tríade que coloca em causa a independência e a autonomia do trabalho, bem como a responsabilidade da profissão para com a sociedade civil”.

Um estudo de 2015 do Dart Center of Journalism and Trauma, projeto da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, descobriu que entre 4% e 59% dos jornalistas têm transtornos decorrentes de ocorrências relacionadas ao ambiente de trabalho. Os pesquisadores já constavam, então, que “a condição é produzida por uma reação muito potente de estresse em função do cenário corporativo”.

Nada será como antes

O sonho acabou. A profissão de jornalista nunca mais será a mesma. Desde o surgimento da internet, as empresas tradicionais de mídias, geradoras dos melhores empregos, tentam buscar meios de sobrevivência. Os grupos jornalísticos querem parte do poder econômico e político de outros tempos. Pouco provável que voltem a ter a força e a influência.

Jornalistas, especialmente de velhas gerações, sonham com bilionários que, à moda antiga, resolvam investir em grandes redações. Imaginam alguém interessado em promover a contratação de dezenas de profissionais de imprensa. Algo como “faça a imprensa grande de novo”.

A fragilização dos afetos abala os vínculos de jornalistas com o jornalismo. Há um descolamento em velocidade crescente, que também impacta negativamente grande parte dos projetos dos seus companheiros. É cada vez mais remota a possibilidade de um recém-desempregado e, especialmente, um recém-formado encontrarem um empregador, um barão da mídia, capaz de “patrocinar” o relacionamento.

Você pode até não ter começado, mas ainda vai fazer o seu DR profissional, discutir o seu relacionamento. Para começar, precisamos entender que o velho não morreu, e o novo tem chance de nascer, em outras condições. Ou seja, temos chance, como nunca, de construir um novo modelo de imprensa. Uma relação mais livre, mais verdadeira.

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