“Cercados” mostra o “chão de fábrica” do jornalismo na pandemia

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No “cercadinho” em frente ao Palácio da Alvorada, repórteres entrevistam o presidente Jair Bolsonaro; ao lado, fica o espaço reservado para a claque de apoiadores do presidente, de onde também saíram várias agressões verbais aos jornalistas Foto: Reprodução Globoplay

Por Marcelo Freitas*

O jornalista é um profissional que, de certa forma, carrega uma sina: ele noticia as tragédias e alegrias do mundo. Porém, sua tragédia pessoal, bem como seus momentos de alegria, raramente são noticiados. No cinema, o “fazer jornalístico” foi mostrado com perfeição. O filme considerado clássico é “Todos os homens do presidente”, que descreveu o escândalo que acabou resultando, em agosto de 1974, na renúncia do então presidente americano, Richard Nixon.

No Brasil de quase meio século depois, o presidente Jair Bolsonaro, imerso que está no reino das fake news, tem o jornalismo como inimigo. Na linha de frente desse embate em defesa do jornalismo, estão os repórteres; na retaguarda, os editores, produtores e apresentadores, no rádio e na TV. Mas são, particularmente, os repórteres, por estarem na linha de frente, os que primeiro são atingidos pelas palavras desmedidas do presidente.

O mérito do documentário “Cercados”, que está disponível, com acesso liberado, há algumas semanas na Globoplay, é mostrar o que pode ser definido como o “chão de fábrica” do jornalismo na era Bolsonaro. Em uma indústria, chão de fábrica é como se denomina o local da produção; é onde está a linha de montagem. No jornalismo, o chão de fábrica seria o posto avançado de onde se produz a notícia. É onde se dá o relacionamento direto do repórter com a fonte.

O documentário registra esse   relacionamento durante a pandemia do coronavírus. Mostra os rostos dos repórteres que ficam no “cercadinho” construído pela Presidência da República no Palácio da Alvorada para nele se instalarem os repórteres que cobrem o setor. Mostra os repórteres fazendo perguntas ao presidente e tendo que repeti-las, em alguns casos, muitas vezes, para que se façam entender a uma pessoa que prefere, claramente, desconversar sobre o que está sendo perguntado.

Não foram poucas as cenas mostradas no documentário em que se ouve, aos gritos, os xingatórios do presidente à imprensa, como no dia em que o jornal “Folha de S. Paulo” noticiou que Bolsonaro tentou mudar a direção da Polícia Federal para blindar seus filhos de investigações. “Que imprensa canalha é a Folha de S. Paulo. Isso é uma patifaria”. Ou então, quando o governo decidiu divulgar os números da Covid somente às 22h, para evitar que entrassem no Jornal Nacional. Naquele dia, Bolsonaro fez o seguinte comentário: “Acabou a matéria do Jornal Nacional. Não vamos correr [para divulgar] às seis da tarde para atender à TV funerária”. Nesse dia, o tiro saiu pela culatra, pois o JN entrou com edição extraordinária assim que os números foram divulgados. E os principais veículos de imprensa do país decidiram montar um pool que garantiu o acesso aos dados a tempo de entrarem nos telejornais da noite.

O repórter fotográfico Edmar Barros, da Associated Presse, no cemitério de Manaus, registra o primeiro pico da pandemia na capital amazonense Foto: Reprodução Globoplay

Em frente ao cercado no qual os repórteres ficam, não foram poucas as grosserias dirigidas aos profissionais da imprensa que estavam exercendo sua função. O filme mostra dezenas desses xingamentos.

Abaixo, seguem alguns:
– Cala a boca.
– Tenham vergonha na cara.
– Se não tem o que falar, cala a boca. Fica quieto.
– Se as perguntas forem pertinentes, eu continuo. Se não forem, estou fora.
– Quando vocês pararem de fazer fofoca, eu falo com vocês.
– Qualquer pergunta tendenciosa, acaba a entrevista.
– Eu não vou me submeter a um interrogatório de vocês. Vamos lá, sem interrogatório. Outra pergunta aí. Não venha com palhaçada. É palhaçada o que você está fazendo.
– Vamos lá, cara, acabou a sua cota [de perguntas].

O documentário não se fixa apenas na descrição do relacionamento tenso entre Bolsonaro e os repórteres setoristas que cobrem o Palácio da Alvorada. A câmera acompanha o jornalista David Frielander, editor-executivo do jornal “O Estado de S. Paulo” quando este, pela primeira vez após o início da pandemia, retorna à redação e a mostra completamente vazia, às escuras.

O documentário mostra também algumas das reuniões de preparação do Jornal Nacional. Revela, por exemplo, o desalento do apresentador William Bonner por dado um tom condenatório à notícia de que um enfermeiro usou um saco plástico para tentar salvar um paciente que estava com problemas respiratórios.

– Pode ter sido uma tentativa heróica de salvar uma vida com um saco plástico. [A minha narração] tinha tom condenatório do qual me arrependi completamente. Se fosse meu pai, eu ia deixar que tentasse. Faz, senão vai morrer. Não tive a oportunidade de enxergar isso com clareza. Ontem foi dia muito difícil.

Mostra também detalhes prosaicos, que os telespectadores que estão do lado de cá nunca ficaram sabendo, por exemplo, quando uma das editoras do Jornal Nacional, ao editar a matéria da famosa reunião ministerial de abril – que ficou conhecida, entre outros infortúnios, pelo excesso de palavrões pronunciados pelo presidente – indaga de sua chefia superior se o som da palavra “bosta” tinha que ser substituído pelo “piiii”. São detalhes que revelam a preocupação do “chão de fábrica” de uma redação de jornalismo com a qualidade de seu trabalho.

A repórter e produtora Daniela Zampollo, à esquerda, do Profissão Repórter, da TV Globo, durante plantão em frente a um hospital em São Paulo Foto: Reprodução Globoplay

A câmera acompanha também os repórteres fotográficos, Raphael Alves da agência espanhola EFE, e Edmar Barros, da Associated Presse no cemitério de Manaus no primeiro pico da pandemia na capital amazonense, em abril. Edmar relatou seu desejo de não mais voltar àquele local e, ao mesmo tempo, deixou claro seu compromisso em registrar o que estava acontecendo. Na pressa em fazer os enterros, os corpos muitas vezes nem eram identificados. Chamou-lhe a atenção uma família que, como marca, optou por colocar um copo plástico em cima da cruz onde estava sepultado o familiar, na esperança de que um dia pudesse retornar e dar-lhe uma identificação digna. “É triste ver o túmulo identificado com um copo descartável”, desabafou Edmar.

O documentário mostra o incansável trabalho Daniela Zampollo, repórter e produtora do Profissão Repórter, da TV Globo. Para produzir imagens de dentro do hospital em cuja portaria estava de plantão, ela afixou uma câmera portátil em uma espécie de capacete que um médico concordou em usar dentro do hospital. Essa câmera registrou o desespero de uma médica diante da quantidade de mortes ocorridas em seu plantão. Mostrou uma tentativa de ressuscitação de um paciente em estado gravíssimo, até o momento em que os médicos desistem de tentar trazê-lo de volta à vida. Mostrou o desespero de uma mulher ao receber a notícia da morte de um familiar. Ela se ajoelha e o médico, como que em sinal de respeito e querendo ajudá-la, ajoelha-se também.

O documentário vai ao Ceará, onde mostra o trabalho do repórter Everton Lucas, da TV Ceará, uma emissora pública daquele estado. Mostra o sofrimento de pessoas que perderam parentes. Mostra o incansável trabalho dos jornalistas que fazem a checagem de fake news, como Alessandra Monnerat, do projeto Comprova; e Roney Domingos, do G1; cujo pai morreu de Covid. No documentário, emocionado, ele fala sobre a importância do trabalho que faz. “É como estar envolvido em uma guerra em que, ao conseguir produzir uma checagem confiável, pode-se estar salvando vidas”, afirma Roney.

Marcelo Carlucci, operador da TV Globo, emociona-se ao ser recebido por uma salva de palmas dos colegas, depois de se curar da Covid-19 Foto: Reprodução Globoplay

A sina que o jornalista carrega o leva a falar muito pouco de si. Mas o filme, de certa forma, quebra essa sina ao mostrar, também, os relatos dos jornalistas que, por também estarem na linha de frente, em hospitais e postos de saúde onde estão os doentes da Covid, acabaram ficando doentes. Uma das cenas finais do documentário registra o choro emocionado do operador da TV Globo Marcelo Carlucci, que ficou afastado porque contraiu a doença e que ao retornar à redação, é recebido com uma salva de palmas dos colegas.

“Cercados” não levanta discussões sobre a linha editorial deste ou daquele veículo. Não é este seu objetivo. Sem grande mérito é o de mostrar uma realidade que poucos conhecem. E que não é glamourosa. É semelhante à de um tanto de outros profissionais, como médicos e enfermeiros, por exemplo, que também estão na linha de frente. “Cercados” deve ser visto com o olhar do “chão de fábrica” da produção da notícia. E nesse chão de fábrica da produção da notícia estão pessoas comuns. De carne e osso, que também sofrem, têm muitas dúvidas e também – o que talvez seja o mais importantes: são pessoas que perguntam. Talvez por isso, incomodem. Como ao presidente da República.

*Marcelo Freitas é jornalista e diretor do Sindicato dos Jornalistas de Minas

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