Por Aldo De Luca, MediaTalks, Londres
A capacidade de um veículo de comunicação construir e destruir reputações é proporcional ao seu tamanho e abrangência. É de se supor que grandes organizações jornalísticas globais esmerem-se em desenvolver e aperfeiçoar controles para que evitar falhas individuais ou uso de expedientes pouco elogiáveis para conseguir furos.
Mas não é necessariamente o que acontece na prática.
A BBC enfrenta uma tormenta por causa da denúncia de que a famosa entrevista com a princesa Diana em 1985, considerada por muitos como “a entrevista do século”, foi obtida com a providencial ajuda de documentos forjados pelo repórter para convencê-la de que estava sendo espionada e assim decidir revelar os segredos da infidelidade e dos transtornos alimentares.
Embora coloque em questão os valores da emissora devido aos sinais de que houve uma operação-abafa conduzida pela diretoria de então, o caso ocorreu há longínquos 25 anos. Mas histórias assim não ficam no passado. O confiável e respeitado The New York Times atravessa uma crise novinha em folha, que reúne elementos semelhantes aos da história da BBC: atos individuais de um profissional e pouca ação da chefia para apurar ou admitir falhas que parecem ser evidentes.
A bomba desta vez explodiu no colo de Rukmini Callimachi, uma das mais importantes correspondentes do jornal, especializada em terrorismo. Contratada em 2014, logo tornou-se uma das estrelas mais brilhantes da redação, protagonizando coberturas internacionais como as da Al-Qaeda e do Estado Islâmico.
Em 2018, lançou o premiadíssimo podcast Califado, que lhe garantiu a terceira indicação como finalista do cobiçado Prêmio Pulitzer de reportagem internacional. Com a prisão da principal fonte da série pela polícia canadense, a credibiliade da história foi colocada em dúvida. E o mais duro ataque veio de dentro de casa: o colunista de mídia Ben Smith não deixou pedra sobre pedra em um artigo, publicado no próprio jornal, no qual questiona a conduta da repórter e dos chefes.
O caso ocorre 17 anos depois de outra crise envolvendo a credibilidade das matérias de um dos repórteres do New York Times. Não chega a ser má-fé como foi a do repórter Jayson Blair, demitido em 2003 por plagiar e forjar 36 das 73 reportagens publicadas ao longo de cinco meses, o que causou na época a demissão de dois editores e a criação de uma comissão interna para reforçar os controles da redação e evitar a repetição de casos semelhantes.
Mas pode causar grande estrago. E serve como exemplo para inspirar redações em todo mundo a repensarem controles e reação quando um deslize − mesmo que involuntário − acontece.
Grande aposta do NYT, podcast tornou acessíveis os conflitos distantes
O podcast, em 10 capítulos, foi uma grande aposta do jornal e atraiu grande audiência, graças à narrativa em estilo cinematográfico de Callimachi, que transformou conflitos distantes em histórias acessíveis ao público norte-americano. Nascida na Romênia comunista, sua família fugiu do país quando tinha 5 anos, tornando-se refugiada na Suíça antes de ir para os Estados Unidos.
Em 2006, Callimachi ingressou na Associated Press e foi enviada como correspondente ao Senegal. Tornou-se chefe do escritório da África em 2011 e dois anos depois começou a cobrir terrorismo, quando residentes da cidade de Timbuktu, no Mali, a levaram aos prédios que haviam servido de quartel-general da Al-Qaeda. Lá encontrou milhares de documentos que demonstravam que os lideres da Al-Qaeda no Golfo forneciam orientação no campo de batalha para seus subordinados no Mali.
A partir de 2014 passou a brilhar nas páginas do New York Times e Califado vinha sendo considerado como um dos pontos altos de sua carreira. Até setembro deste ano.
Relatos do podcast foram simplesmente inventados, acusa polícia canadense
O problema é que o podcast, no ar até hoje, é todo baseado nos relatos do canadense Abu Huzayfah, recheados de sangue e de ferozes atrocidades que ele teria cometido como combatente do Estado Islâmico na Síria.
Na verdade, seu nome verdadeiro é Shehroze Chaudhry, um jovem de 25 anos nascido em Toronto e preso em setembro pela RCMP (Polícia Montada Real Canadense) por farsa de terrorismo, sob a acusação de falsificar seu passado como combatente do Estado Islâmico. Os detalhes da investigação ainda não são públicos.
E o pior: Chaudhry pode nunca ter estado na Síria, e as histórias que contou no podcast sobre assassinatos e destruição teriam sido simplesmente inventadas.
Colunista de mídia do NYT sentencia: caso obscurece Callimachi e o próprio jornal
A prisão em Toronto causou ondas de choque que fizeram estremecer a redação do jornal em Nova York, onde o colunista de mídia Ben Smith não poupou a correspondente, os editores que a supervisionaram e nem as práticas de seu empregador.
Contratado este ano pelo jornal depois atuar como editor chefe do BuzzFeed News desde sua criação, há oito anos, Smith pesquisou todo o caso e os envolvidos para escrever uma ampla reportagem em sua coluna de 12 de outubro, mostrando uma série de lapsos de julgamento e de decisões de não levar em conta contradições, tanto por parte da correspondente como de seus editores. Seu julgamento final foi avassalador:
“Callimachi agora enfrenta críticas intensas de dentro e de fora do NYT. Mas, embora parte da cobertura a tenha retratado como uma espécie de atriz desonesta, minha reportagem sugere que ela estava entregando o que os líderes mais antigos da organização pediam, e com seu apoio”.
Jornal sabia das inconsistências da fonte antes do lançamento de Califado
Smith contou em sua coluna que, ao serem apresentados ao roteiro de Califado, os editores Michael Slackman e Matt Purdy alertaram os produtores a história parecia depender da credibilidade de um único personagem, “o canadense cujas histórias vívidas de execução de homens enquanto sangue quente espirrava por toda parte eram tão sinistras quanto não corroboradas”.
Para salvar o projeto que acabara de anunciar, o The New York Times, segundo a apuração de Smith, começou então um esforço frenético para tentar confirmar o relato de Abu Huzayfah. Em todo o Oriente Médio, repórteres do jornal foram solicitados a encontrar a confirmação dos laços da fonte com o Estado Islâmico, mas só descobriram que os desertores do grupo nunca tinham ouvido falar dele.
Jornalistas nos Estados Unidos também foram acionados e o máximo que conseguiram foi a confirmação de duas fontes de agências de inteligência de que Abu teria ligações com o Estado Islâmico, mas sem confirmação de que estivera na Síria.
Apesar da falta de confirmação, jornal decidiu seguir em frente
Mesmo sem conseguir comprovar a credibilidade da fonte de Callimachi, Smith conta que o jornal decidiu avançar com o projeto do podcast. O lançamento foi feito um mês depois, em abril de 2018:
“O primeiro episódio de Califado foi lançado marcando um grande passo do NYT em suas ambições multimídia, promovido com uma campanha de marketing brilhante, que apresentava uma imagem atraente, com os destroços de Mossul de um lado e o rosto da correspondente Callimachi do outro”.
Inconsistências só foram apresentadas no sexto capítulo, mas sem desmascarar a fonte
Ao analisar o caso, Erik Wemple, colunista de mídia do Washington Post, disse que Califado seguiu uma narrativa “maluca”, apresentando a história de Abu Huzayfah durante mais de seis longos episódios antes de perguntar se ele poderia não ser real. “Em duas passagens horríveis, Abu descreve a execução de dois homens”, escreveu Wemple. “Menos onipresentes são os avisos de Callimachi de que talvez esse sujeito não estivesse dizendo a verdade”.
Em sua coluna, Smith concordou com a crítica do jornal concorrente:
“O que está claro é que o NYT deveria estar alerta para a possibilidade de estar reportando a história que queria ouvir − ‘torcendo pela história’, como disse Erik Wemple do Post”.
Clique AQUI para ler a íntegra no Media Talks.
[23/11/20]
Que história!