Perdemos, por Mirtes Helena Scalioni

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Quando a Secretaria da Cultura – que nem ministério é – dá sinais de que a censura pode voltar; quando os radares das estradas são desligados incentivando a morte; quando o STF acata a decisão de um júri popular de uma pequena cidade, dando liberdade a um homem que esfaqueou sua mulher por ciúmes, sob a justificativa de uma anacrônica “legitima defesa da honra”; quando o parlamento estuda apoiar a decisão de apartar alunos deficientes de seus colegas sem deficiência, acabando com a ideia vitoriosa de inclusão, eu me pergunto: será que perdemos?

Quando as praias estão cheias de óleo; quando as árvores da Amazônia estão pegando fogo; quando os bichos do Pantanal estão morrendo queimados e até a nossa Serra do Cipó arde em chamas; quando um ministro diz que homossexuais são resultado de famílias desajustadas; quando uma ministra defende só e tão somente os valores da família tradicional; quando o asfalto cobre os jardins; quando o homem que governa zomba da peste; quando crianças e adolescentes preferem se envolver nas redes sociais com seus dilemas em vez de aproveitar a outra rede, de amigos, pais e avós; quando a música se torna pobre e sem poesia, eu quase admito: nós perdemos.

Infelizmente, parece que a geração que está hoje entre 60 e 80 anos perdeu. Será que nada do que foi plantado por aqueles jovens aguerridos frutificou? De nada serviram nossos dias de luta, nossa guerra contra a repressão, na qual alguns até perderam a vida, nossos discursos inflamados nos diretórios estudantis e bares, nossa sincera intenção de mudar o mundo?

Será que de nada valeram nossa vida em repúblicas, nosso compartilhamento de poucas latas de sardinha, nossa vontade de construir um mundo de paz e amor? Parece que foram inúteis nossas canções madrugada afora, nossa busca por acordes harmônicos, nossa alegria criativa, nossa proposta de transformar filmes em debates ferrenhos.

De que serviram afinal nossos valorosos ideais de humanidade e defesa do meio ambiente, nossas ideias transformadoras e modernas, nossos canteiros cheios de flores? Será que foram inúteis também nossas passeatas pela liberdade da mulher, nossa revolução pela igualdade de gêneros, nossas manifestações muitas vezes incompreendidas? Será que não conseguimos ser profícuos?

 

[9/10/20]

6 COMMENTS

  1. Querida Mirtes.

    Não é que deixamos de ser isso ou aquilo, profícuo ou não. É o novo normal, não devido à pandemia. mas à imbecilidade humana, determinada por muitos fatores, uma deles à tecnologia, que não soubemos absorver como veículo de sabedoria e debates. Somos donos de uma sabedoria idiota, atrás de uma caixinha iluminada, alheios ao que ocorre ao redor. E há milhões que enxergam nela uma mensageira da verdade.

    Abraço do Arnaldo,

  2. arnaldo11 de outubro de 2020 de 21:18
    Seu comentário está aguardando mdoeração
    Querida Mirtes.

    Não é que deixamos de ser isso ou aquilo, profícuo ou não. É o novo normal, não devido à pandemia. mas à imbecilidade humana, determinada por muitos fatores, uma deles à tecnologia, que não soubemos absorver como veículo de sabedoria e debates. Somos donos de uma sabedoria idiota, atrás de uma caixinha iluminada, alheios ao que ocorre ao redor. E há milhões que enxergam nela uma mensageira da verdade.

    Abraço do Arnaldo,

  3. Estimada Mirtes: um convite á reflexão sua crônica . Refleti e concluí que entre perdas e ganhos, nesta Vida, o importante é continuar tentando! Abraço.

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