Nunca mais!, por Arnaldo Viana

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Sexta-feira qualquer. Tarde suave naqueles tempos verde-oliva, entre os anos 1960/70. Ele caminha rente ao Parque Municipal, na Afonso Pena. Sorri e murmura: “E os trogloditas querem cercar esta maravilha!”.

Atravessa a Bahia e para entre os edifícios Sulacap e Sul América. Mãos nos bolsos das calças cor de areia, olha o viaduto Santa Tereza pelo vão dos dois prédios. A mente viaja ao bairro de noites boêmias, violões e vozes alternativas. Não sabia ainda, mas a sanha imobiliária lhe tiraria aquela vista. O vento de outono sacudia a leve camiseta azul desbotada.

Retoma a caminhada. Assobia uma canção de Lennon e entra no Café Nice. Pega a ficha com o Afonso Caldeira a vai ao balcão. Ao lado, a morena mexe a xícara e ele percebe o soslaio.

A cumprimenta. Ela responde com um sorriso. “Conheço você, não pessoalmente, claro. Já o vi aqui”, diz a moça. “Venho sempre”, responde. “Uma vez, durante uma manifestação estudantil, um PM corria atrás de você, com aquele cassetete enorme. Ele o pegou?” “Não. Peguei carreira pela Carijós, subi a São Paulo e atravessei a Galeria do Ouvidor, até a Curitiba.”

A garota sorri. “Ainda bem. Fora a ditadura! O que você estuda?” “Jornalismo. E você?”. “Pedagogia. Agora preciso ir. Gostaria de conhecê-lo melhor. Trabalho, mas amanhã, sábado, estou de folga. Que tal, aqui, às 10h?”. “Combinado”.

Ele sai, acende o cigarro sem filtro e retoma o assobio. Troca Lennon por Milton. Adora Travessia. Dia seguinte, ele, de calças jeans e camiseta amarela; ela, de vestido florido, dois dedos acima dos joelhos e cabelos presos atrás. Cumprimentam-se. Beijinhos na face. “Hoje, não quero café. Cerveja.” Ele concorda.

“Seu nome?” “Atílio.” “O meu, Olívia.” “Quais bares você frequenta?” “Gosto do Maletta, Lucas e Pelicano. Alguns do Santa Tereza, Cantina do Alvim e Mocó da Iaiá…”

Ela, cara de espanto: Mocó da Iaiá?” “Um boteco legal. Não muito atraente, mas cheio de intelectuais e o Silveira, o dono, é bom de cozinha.” Olívia abre um sorriso. “E cinema? Gosto do Palladium. Semana passada fui ver Sempre aos domingos.” Atílio sorri.

“Vou sempre ao Pathé.” Ah, já sei, os chamados filmes de conteúdo simbólico. Bem, vamos ao que interessa. Quero cerveja em lata. Coisa nova no país. Bebo com limão e sal. Sem copo. Gosto de botecos e de restaurantes.

No fim do mês, reservo uma grana só para comer bem. Alpino, Casa Branca, Haus Munchen; às vezes, Tip Top e o Porto, lá no Santa Inês. Vamos à Pampulha?” Ele diz sim. Chamam o táxi. Um Fusca amarelo, sem o banco dianteiro direito.

Mais romântico seria de bonde, mas ele não existia mais. O carro desce a Afonso Pena, passa diante da Camisaria Cadillac, do Cine Arte, a Curitiba e a 21 de Abril.

Ao atravessar a Praça Vaz de Melo, ela pergunta: “Não é aqui um dos corações da boemia?” “É, área da malandragem também.” O amarelinho segue pela Antônio Carlos. A avenida, sem canteiros centrais, permite manobras para os lados. O táxi vira à esquerda, na orla e para diante de um barzinho.

Uma tarde de boa conversa, beijos e bebida gelada. Passam a noite em um motel. Domingo, voltam antes do meio-dia. Descem na Praça Sete. Ela se despede e afasta com um sorriso enigmático. Ele tem a impressão de que não a veria novamente.

Assobia Canção da Despedida, de Vandré. Caminha rumo ao diretório da faculdade para mais uma reunião de preparo de outro manifesto. Chega de mordaça, truculência. “Ditadura? Basta!”
[2/10/20]

 

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