Por que Bolsonaro tem problemas com furos

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Por Eliane Brum, El País

Em 18 de fevereiro, o antipresidente Jair Bolsonaro precisava tirar o foco da morte do miliciano Adriano da Nóbrega, pessoa-chave para esclarecer o esquema de “rachadinhas” no gabinete de Flávio Bolsonaro, a relação da família Bolsonaro com as milícias que atuam no Rio de Janeiro e também quem mandou matar Marielle Franco – e por quê. A eliminação de Nóbrega, com vários indícios de execução, voltava a colocar em destaque as relações dos Bolsonaros com as milícias. Era preciso desviar a atenção. Como de hábito, Bolsonaro usou o velho truque: criou um novo fato ao atacar a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo. A repórter, uma das mais competentes da sua geração, estava entre os jornalistas que denunciaram o uso fraudulento de nomes e CPFs para disparos de mensagens no WhatsApp em benefício de Bolsonaro. Uma de suas fontes, Hans River, ao depor na CPMI das Fake News do Congresso, disse que Patrícia teria tentado obter informações “a troco de sexo”, embora as trocas de mensagens entre os dois provem exatamente o contrário. Em sua coletiva informal diante do Alvorada, a mesma em que costuma mostrar bananas para os jornalistas, Bolsonaro atacou: “Ela [Patrícia] queria um furo. Ela queria dar o furo [pausa para risos] a qualquer preço contra mim”.

Este episódio, amplamente divulgado, revela mais do que o truque do manual dos novos fascistas para desviar a atenção do público. Bolsonaro tem problemas com furos. Em vários sentidos. Sua obsessão com o que cada um faz com seu ânus é notória. Está sempre tentando regular onde cada um coloca o próprio pênis. Volta e meia dá um jeito de falar de cocô, como fazem as crianças pequenas. Para ele, a vagina é um furo, visão bastante surpreendente para um homem com mais de 60 anos que já deveria, para o próprio bem, ter conhecido um pouco mais sobre o órgão sexual das mulheres. Chegou a dizer que a Amazônia “era uma virgem que todo tarado de fora quer”. Só um/a psicanalista que um dia recebesse Bolsonaro no seu divã poderia encontrar pistas para o que essa redução da sexualidade a uma coleção de furos – uns feitos para o estupro, outros proibidos para o sexo – significa. Nós, os governados por tal homem, só conseguimos entender que ele tem obsessão por furos, por cocô e por pênis. E que isso determina seu Governo.

Bolsonaro tem obsessão também por furos no sentido jornalístico da palavra, a notícia dada em primeira mão, a revelação do repórter sobre o que ninguém sabia. Patrícia, ao revelar junto com seu colega Artur Rodrigues o uso ilegal do Whatsapp na campanha, deu um furo que incomodou muito Bolsonaro e sua corte. E foi isso que a tornou um alvo. Essa história, a dos furos jornalísticos e da conflituosa relação de Bolsonaro com mulheres jornalistas é, porém, muito mais antiga. Ela funda a própria relação de Bolsonaro com a imprensa mais de 30 anos atrás, quando ele ainda era capitão do Exército. A história da misoginia (ódio às mulheres) da parcela dos brasileiros que Bolsonaro representa e também de parcelas dos brasileiros que não representa é, porém, ainda mais perigosa, porque não começa nem termina com Bolsonaro. A misoginia determinou os acontecimentos que culminaram na sua eleição.

Na semana em que o mundo comemorou o dia da mulher (8 de março) e que terão passados dois anos do assassinato de Marielle Franco (14 de março) sem sabermos quem a mandou matar e o porquê vale a pena olhar com toda a atenção para o que os fatos contam de Bolsonaro e também para o que os fatos contam da sociedade brasileira. Bolsonaro só se tornou o primeiro antipresidente da história porque parte da sociedade brasileira quer que as mulheres voltem a ser “belas, recatadas e do lar”. E não são apenas os toscos como Bolsonaro que querem isso, embora só estes saiam por aí contando orgulhosamente para o mundo.

1) A jornalista que denunciou Bolsonaro por planejar explodir bombas nos quartéis

A relação de Jair Bolsonaro, então capitão do Exército, com a imprensa iniciou em setembro de 1986, com a revista Veja. Naquele tempo, a Veja era a principal revista semanal do país e ser a principal revista semanal do país era algo muito importante. A tiragem chegava perto de um milhão de exemplares, o que é muito para um país de não leitores. Todas as pessoas que tinham qualquer poder, em diferentes áreas e níveis, liam a Veja já no sábado pela manhã. Na segunda-feira ou ainda no domingo, os principais jornais do país com frequência repercutiam algum furo da Veja. Foi neste palco midiático que Bolsonaro fez sua estreia muito bem sucedida na política: em artigo intitulado “O salário está baixo”, o jovem capitão reclamava da política salarial para os militares de José Sarney, o primeiro presidente civil depois da ditadura que oprimira o país de 1964 a 1985.

Após a publicação, Bolsonaro foi punido com 15 dias de prisão disciplinar, mas tornou-se muito popular entre soldados, oficiais e até mesmo entre generais de pijama. Bolsonaro gostou tanto de seus 15 minutos de fama que foi pessoalmente agradecer ao chefe da sucursal da revista no Rio de Janeiro. Naquele momento, ele via na imprensa a possibilidade de ganhar a importância que achava que merecia e talvez “ficar rico”, o que mais de uma vez afirmou desejar.

Um ano depois, porém, Bolsonaro odiaria a Veja. A “culpa” era de uma mulher: a jornalista Cassia Maria Rodrigues. Ela revelou o plano “Beco Sem Saída”, feito por Bolsonaro e um colega conhecido como “Xerife” (Fábio Passos), que consistia em botar bombas nos quartéis, mas sem ferir ninguém, para chamar a atenção para os baixos salários dos militares. Esta história está minuciosamente contada no livro O Cadete e o Capitão (Todavia, 2019), do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, cuja leitura recomendo.

A cúpula do Exército, que havia criticado duramente Bolsonaro pelo artigo um ano antes, desta vez fechou-se para supostamente proteger a corporação. Ter dois oficiais ensandecidos e fora do controle planejando botar bombas bem na cara dos generais, e tudo isso na delicada transição para a democracia após uma ditadura militar que formalmente tinha acabado apenas dois anos antes, era uma notícia que os militares não queriam.

Cassia e a Veja foram acusadas de inventarem toda a história. Bolsonaro negou ter falado com a jornalista. Anos mais tarde, já deputado federal, a chamaria de “maluca”. A Veja então publicou na edição seguinte dois croquis feitos a mão por Bolsonaro quando deu a entrevista à repórter, mostrando o funcionamento do plano: em um deles, segundo a revista, viam-se as tubulações do que seria a adutora do Guandu, responsável pelo abastecimento de água no Rio de Janeiro e, junto delas, o desenho de uma carga de dinamite (“petardo de TNT”). Bolsonaro e Passos seguiram negando as informações da revista. Veja jamais recuou.

Para escrever o livro, Luiz Maklouf Carvalho destrinchou a gravação de todo o julgamento do caso no Superior Tribunal Militar, em 1988. Dois dos três laudos periciais grafotécnicos concluíram que Bolsonaro era o autor dos croquis. Cinco meses antes, um conselho de justificação do Exército já considerara o capitão culpado por 3 a 0 por ter tido “conduta irregular e praticado atos que afetam a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro de classe”.

Quando esperava ser chamada para dar seu depoimento à corte, Cassia foi ameaçada por Bolsonaro. O então capitão fez com os dedos o sinal que se tornaria sua marca registrada na presidência: a arma apontada. Ela então teria lhe perguntado se era uma ameaça de morte. Bolsonaro teria respondido que não, mas que ela “poderia se dar mal se continuasse com essa história”.

O ministro relator do caso, general Sérgio de Ary Pires, não hesitou em atacar a repórter de forma muito semelhante a que Bolsonaro usaria contra Patrícia Campos Mello e outras jornalistas quando na presidência, guardadas as diferenças de linguagem, de época e de referências. “A mentira está presente em todas as declarações e afirmações dessa famigerada repórter Cassia Maria”, afirmou. “Essa moça não deixa de ser uma vivandeira, sendo que as vivandeiras prestam serviços, lavam roupa dos soldados, e essa quer lavar a roupa suja dos quartéis”. Em uma de suas acepções, “vivandeiras” são as prostitutas que acompanhavam as tropas nos períodos de guerra. Como se vê, nunca faltou inspiração para Bolsonaro nas Forças Armadas do Brasil.

A forma como o julgamento foi manipulado para que Bolsonaro fosse liberado é flagrante. Tudo indica que Bolsonaro foi absolvido com o acordo de que deixasse o Exército. Seis meses depois do julgamento, já eleito vereador pelo Rio de Janeiro, Bolsonaro passou para a reserva. Começava então sua exitosa carreira como político profissional que converteria três de seus filhos homens também em políticos profissionais. Carreira exitosa no sentido fisiológico, já que, em seus quase 30 anos como deputado federal, Bolsonaro conseguiu aprovar apenas dois projetos – fato que não impediu os eleitores de elegerem-no presidente da República em 2018.

O germe de tudo o que Bolsonaro se tornaria estava lá, no episódio das bombas. Seu ódio à imprensa que não come na sua mão. Seu ódio à jornalista mulher que denunciou o seu plano e, por pouco, não abortou sua carreira política iniciante e suas grandes esperanças para si mesmo, o que poderia ter acontecido em caso de uma condenação pelo Superior Tribunal Militar. O gesto da arminha para ameaçar seus desafetos, hoje uma parte da população brasileira.

Naquele momento, Bolsonaro absorveu profundamente dois aprendizados que norteariam sua vida como político profissional: 1) é legítimo manipular a verdade e a justiça para proteger seus interesses, como a cúpula do Exército fez ao absolvê-lo apesar de todas as provas; 2) é possível planejar até mesmo um atentado terrorista, desmentir o que fez e o que efetivamente disse e sair não apenas ileso, mas eleito.

Hoje, na presidência, Bolsonaro chegou ao ponto de constantemente desmentir inclusive a si mesmo. Nenhum outro político corrompeu a verdade como ele, ao tornar-se o principal expoente da autoverdade: o conceito de que a verdade é uma escolha pessoal, do indivíduo, desconectada dos fatos.

Em 1993, em entrevista aos pesquisadores Maria Celina D’Araújo e Celso Castro, o general Ernesto Geisel, quarto militar a presidir o Brasil durante a ditadura, afirmou: “Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar”. É apenas parcialmente verdade. O Exército não conteve Bolsonaro porque não quis contê-lo. Para “contê-lo” bastaria um julgamento que fizesse justiça.

Na mesma linha, quando uma parte dos generais apoiou a candidatura de Bolsonaro, em 2018, era exatamente Bolsonaro quem queriam. Não há um grupo de militares de alta patente responsável que de repente se surpreendeu com o descontrole de Bolsonaro – ou um grupo de militares responsáveis e outros tresloucados, os bons e os maus, os ideológicos e os não ideológicos. Tudo isso é narrativa para criar oposição sem oposição.

O descontrole de Bolsonaro é útil. É possível que alguns generais tenham a ilusão de que, na hora certa, poderão controlá-lo. No momento, porém, Bolsonaro está fazendo exatamente o que se esperava que fizesse. Os militares voltaram ao Planalto, o que parecia impensável apenas alguns anos atrás, e parte deles visto como poços de temperança diante do “Cavalão” que ocupa o cargo máximo da República. O roteiro segue seu curso. Um exagero ali, um acidente aqui, mas tal qual como previsto no essencial.

Bolsonaro é, por vários caminhos, produto de uma parcela influente do Exército brasileiro – e não uma anomalia deste mesmo Exército. Passou da hora de compreender isso.

Clique AQUI para ler a íntegra no El País.

(Crédito da foto: Zak Bennett / AFP.)

[11/3/20]

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