Os efeitos nefastos da reforma da Previdência

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Por Reinaldo Marques da Silva, Le Monde Diplomatique

A reforma da Previdência é falha em todos os seus aspectos, não corta privilégios, e sim os exacerba, ignora os verdadeiros vilões das contas públicas e repassa o débito para a população.

A Constituição brasileira, como se sabe, é do tipo rígida, exigindo um ritual solene e difícil para sua modificação. A aprovação de uma emenda constitucional reclama iniciativa restrita (art. 60 da Constituição) e aprovação por maioria qualificada de três quintos dos parlamentares, nas duas casas legislativas, em dois turnos.

O que era para ser difícil, com a reforma da Previdência (PEC 06/2019), todavia, não está sendo. Na verdade, está fácil demais. Na Câmara dos Deputados, a PEC 06/2019 foi votada e aprovada em dois turnos em tempo recorde, com larga margem de vantagem. O debate não respeitou sequer os interstícios legislativos. Mais de cem alterações foram introduzidas no texto sem qualquer debate. Ora, somente a compra disfarçada de votos mediante a liberação de R$ 3 bilhões em benefícios parlamentares poderia explicar esse resultado.

O Senado, por sua vez, sinaliza o mesmo. O primeiro turno de votação ocorreu em 1º de outubro, e a reforma foi aprovada com ampla maioria dos votos, além da votação de dez destaques, todos rejeitados, à exceção da emenda de supressão das alterações que ocorreriam no abono salarial, a única vitória dos trabalhadores. Senadores governistas e alinhados com o capital financeiro ignoraram o debate democrático. O atropelo foi tamanho que entre a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e o plenário do Senado não decorreram sequer cinco minutos.

O segundo turno provavelmente acontecerá em 22de outubro, haja vista a falta de acordo com os partidos de oposição quanto às regras de divisão dos recursos do pré-sal. Nota-se, pois, um total distanciamento do Senado das reais necessidades dos trabalhadores, objetivando, isso sim, chantagear o governo com o repasse de recursos do petróleo para Estados e municípios e com a liberação das emendas parlamentares para os redutos eleitorais dos senadores.

O Senado, decerto, aprovará, em dois turnos, a reforma que afetará seriamente o futuro dos trabalhadores brasileiros. Os ideais de maior igualdade, melhor distribuição da renda, melhoria na qualidade de vida das famílias brasileiras menos abastadas podem ser irreparavelmente abandonados. Não era para ser assim, posto que do Senado, a câmara alta, sênior e, por conseguinte, mais sábia do Congresso Nacional, espera-se maturidade para conter os arroubos da Câmara dos Deputados.

Cumpre observar, demais disso, que a reforma desconstitucionaliza as regras previdenciárias e remete seus parâmetros para leis complementares, muito mais fáceis de serem modificadas. Por assim ser, não bastasse a perversidade da atual proposta, abre-se caminho largo para novas alterações. Permite-se ao governo prosseguir indefinidamente com as reformas.

A PEC 06/2019 ataca os três pilares do benefício previdenciário, quais sejam, a idade mínima, que aumenta; o tempo de contribuição, que aumenta; bem como o valor do benefício, que diminui. Todo o sistema de proteção social previsto na Constituição Federal de 1988 será desmantelado. E para acelerar as coisas, muito do conteúdo da reforma já vem sendo aprovado via medidas provisórias e via legislação ordinária.

É, deveras, o desmonte da Seguridade Social. Está em curso um processo de privatização, de entrega dos recursos das políticas sociais ao mercado financeiro. A contribuição tripartite dos empregadores, Estado e trabalhador deixará de existir. A reforma trabalhista, por sua vez, já decretou o fim da contribuição patronal. Desta feita, será dos trabalhadores a responsabilidade pela manutenção do regime de Previdência.

Para alcançar seu intento, o governo tem argumentado que o envelhecimento da população pressiona as contas públicas. Trata-se, no entanto, de uma falácia. O orçamento da Previdência é superavitário, como demonstram estudos sérios, a exemplo daquele realizado pelo Instituto de Economia da Unicamp. O governo, por sua vez, tem manipulado os dados para fazer crer num déficit que não existe, forçando a aprovação da reforma.

Aprovada a PEC 06/2019, a maior dificuldade para o acesso à aposentadoria e a redução dos benefícios colocarão fim a um regime eficiente de distribuição de renda no Brasil, agravando a sua exacerbada concentração. Haverá uma redução no consumo das famílias e, por conseguinte, desestímulo ao investimento que cria empregos e a renda e movimenta a economia. Uma demanda contraída implicará na redução dos ganhos dos setores produtivos.

O governo ignora os reais vilões das contas públicas e quer repassar a conta para a população. Ignora a corrupção generalizada, as fraudes, a sonegação, os privilégios (por exemplo, o governo, no final de 2018, ampliou o teto constitucional de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil, garantindo altos salários e aposentadorias nas carreiras de membros do Poder Legislativo e do Poder Judiciário), as desonerações ineficientes ao crescimento e a má gestão dos recursos públicos. Quanto ao mais, os recursos previdenciários sofreram significativas apropriações por parte da União, que destinou o dinheiro para outros gastos de interesse do governo ao longo dos anos.

Deveras, ao aumentar o tempo mínimo de contribuição, a reforma da Previdência inviabiliza a aposentadoria daqueles trabalhadores que passam vários anos desempregados ou na informalidade, assim como em empregos intermitentes e de tempo parcial que crescem assustadoramente.

Desta feita, os grupos socialmente vulneráveis serão os mais prejudicados. Há, demais disso, muitas outras crueldades, como a criação da contribuição mínima para trabalhadores rurais, a redução drástica do Benefício de Prestação Continuada pago a idosos em situação de miséria, o corte nas pensões por morte e aposentadoria por invalidez etc.

A privatização da Seguridade Social dará aos bancos e fundos de pensão lucros bilionários, mas condenará à miséria os trabalhadores que não fizerem uma espécie de poupança individual. Sistemas assim já foram experimentados em países da América Latina e do leste europeu, resultando em reduzida cobertura, baixíssimos benefícios, elevados custos administrativos e impactos sociais altamente negativos.

Assim, a reforma da Previdência é falha em todos os seus aspectos, não corta privilégios, e sim os exacerba, ignora os verdadeiros vilões das contas públicas e repassa o débito para a população. E mais, ao desconstitucionalizar as regras previdenciárias, permite ao governo prosseguir indefinidamente com as reformas. O que se vislumbra é um futuro de sofrimento e dor.

*Reinaldo Marques da Silva é doutorando em Direito e Ciências Sociais pela Universidad Nacional de Córdoba (UNC), mestre em Direito Comparado pela Samford University/University of Cambridge, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), graduado em Administração de Empresas pela Faculdade de Administração, Economia e Contabilidade de Ribeirão Preto (USP) e Servidor Público em São Paulo.

(Publicado pelo Le Monde Diplomatique Brasil.)

 

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[16/10/19]

 

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