Jornal de Minas: histórias que todo jornalista deve ler

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Um jornal precário, que mal pagava salários, dirigido por um colaborador da ditadura militar e que recebia dinheiro da repressão. O que esperar de um jornal assim? Histórias, muitas histórias, um cotidiano rico em histórias, que 40 anos depois seus jornalistas contam em livro. Com 34 depoimentos e uma entrevista com o ex-proprietário Afonso Paulino, Jornal de Minas: Histórias que ninguém leu é um livro surpreendente, que deve ser lido por todos os jornalistas.

O Jornal de Minas sucedeu o Diário, fundado em 1935 e mais conhecido como Diário Católico, por pertencer à Arquidiocese de Belo Horizonte. Comprado em 1972 por Afonso Celso Raso, Afonso de Araújo Paulino, José Flávio Dias Vieira, Cristiano Ferreira de Melo e Marcos Sousa Lima, o jornal começou nova fase, que durou até 1988, na qual o nome foi transformado em O Diário – O Jornal de Minas e em seguida apenas Jornal de Minas. Em 1973, Afonso Paulino assumiu o controle do jornal.

No Jornal de Minas debutaram muitos jovens jornalistas, no “jornalismo tacanho e possível de se fazer em um país mergulhado numa feroz ditadura, num jornal mambembe que não faturava o suficiente para pagar os salários em dia e dirigido por um ex-jogador de futebol de salão apelidado de Minhoca”, na definição de Charles Magno Medeiros, um dos autores do livro.

Alguns desses jovens nem eram jornalistas formados em faculdade – como Beth Cataldo, que, aos 18 anos, decepcionada com o curso de História, decidiu pedir um emprego no jornal ao ver um exemplar estampado numa banca de revistas. E se tornou repórter, numa redação em que se destacavam outras mulheres. “Emergia uma geração de mulheres jornalistas, com o ânimo de adentrar nos territórios sagrados onde só os homens eram autorizados a pisar”, escreve Beth no seu depoimento.

De fato, chama atenção o grande número de mulheres que participam do livro. Seus textos revelam a adaptação das mulheres – em geral jovens vindas do interior – ao ambiente da redação – masculino, cheio de palavrões, cigarros e bebidas. Aprender a fumar era parte da iniciação. “Assim é o mundo do jornalismo”, pensava Fátima de Oliveira.

Contradições

É surpreendente, para quem não viveu a experiência do Jornal de Minas, constatar que todos elogiam Afonso Paulino. Educado, elegante, solidário, gentil, galante, afetuoso, idealista – são muitos os adjetivos usados para definir o controvertido empresário e nenhum deles lembra a figura de um torturador ou colaborador perverso da ditadura militar. A jornalista Mirian Chrystus resume assim sua passagem pelo Jornal de Minas: “Ali fui feliz, em plena ditadura militar”.

Afonso Paulino mantinha na redação grandes cachorros, dálmatas, que assustavam jornalistas e visitantes. Chegou a ter 11, inclusive um pastor alemão, e durante algum tempo ate um leão. Mais do que isso: tinha um guarda-costas, Alfredo, Alfredão, apelidado de Zeca Diabo, assassino contumaz, presidiário solto não se sabe como, que servia também de motorista do jornal, em viagens. Alfredão andava armado e anos mais tarde um repórter o encontrou cumprindo pena na Penitenciária Agrícola de Neves. Ele “mexia com as meninas” – hoje seria assédio – e uma vez quase fuzilou um motorista do jornal dentro da própria empresa, sendo contido por colegas.

No dia 1º de novembro de 1975, o Jornal de Minas estampou na sua capa um editorial intitulado “Aos verdadeiros brasileiros”, no qual defendeu a versão da ditadura para o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, no DOI-Codi, em São Paulo: suicídio. “A contradição explodiu: trabalhávamos num jornal favorável à tortura e ao assassinato de jornalistas”, escreveu Mirian Chrystus no seu depoimento.

Num dos depoimentos mais perturbadores, José Carlos Aragão conta que, no começo dos anos 80, respondeu a Inquérito Policial Militar (IPM) por charge publicada no Diário do Rio do Doce, na violenta Governador Valadares. No interrogatório, foram citados fatos ocorridos em 1977, durante manifestação estudantil em Belo Horizonte, quando ele trabalhava no JM. Ele se lembrou que vira na manifestação um fotógrafo e um advogado do jornal. Só então compreendeu que eles não estavam trabalhando para o JM, mas para a repressão.

Em 1975, o assassinato de Vladimir Herzog, fato marcante para uma geração de jornalistas e para a redemocratização do país, foi um divisor de águas na história do Jornal de Minas. Parte da redação se demitiu e fundou o De Fato, conta Aloísio Morais; no novo jornal os jornalistas eram os donos e tinham liberdade para publicar o que queriam. O tabloide durou três anos e teve papel importante na imprensa mineira. Em 2018, no ambiente de golpe em que vive o Brasil, é de se perguntar se os donos de jornais têm convicções mais democráticas do que há 43 anos.

Bons tempos bicudos

Esse jornal que defendeu a tortura e o assassinato de Vladimir Herzog é o mesmo em que todos os autores do livro, não só Mirian Chrystus, viveram dias felizes. “Jornal escola” e “escola de vida” são expressões usadas por vários deles para definir sua experiência no Jornal de Minas. Como diz Beth Fleury, resumindo a contradição: “Bons tempos (bicudos) aqueles!”

Ao sair da redação, José Carlos Aragão – lembra Carlos Herculano no seu texto – repetia naquela geração de jornalistas o costume inaugurado por Carlos Drummond de Andrade de escalar um arco do Viaduto Santa Tereza de madrugada.

Ir à gráfica buscar a calandra, prensa que pesava mais de uma tonelada, era a peça pregada nos focas e que representava seu batismo na redação. A propósito, o livro oferece uma versão para a origem da gíria “foca”: teria sido usada inicialmente por fotógrafos experientes com iniciantes, insistindo para focarem a imagem. “Foca!”, era a ordem, e o termo pegou.

A kombi, que aparece em foto na capa do livro, único veículo do jornal, saía distribuindo e buscando os repórteres pela cidade afora. A apuração era feita na rua, e muitas vezes sem pauta: era preciso descobrir a notícia. Nada de ficar na redação telefonando. É na rua que o repórter tem a experiência de conhecer a cidade e seus moradores como em outras profissões não se conhecem: favelados, presidiários, doentes, políticos, empresários, celebridades…

Como dizia o editor J. Flores, citado por Pedro Costa: “Lugar de repórter é na rua. Se acontecer alguma coisa na redação, eu mesmo cubro”. O perfil que Pedro faz de J. Flores, seu primeiro guru no jornalismo, é um dos mais belos textos do livro. Nele, o jornalista cita esta pérola de humor do jornalismo mineiro: “Diz-se que os jornalistas mineiros são os melhores porque em Minas os fatos se recusam a acontecer”.

“Gostaria de dirigir um jornal do tipo Jornal de Minas, com jovens estagiários, no qual eu pudesse atuar como editor e professor. Mas não existem mais jornais como o JM”, escreveu Charles Magno.

Galpão e rádio

Além dos dálmatas, de Zeca Diabo e da komi, os depoimentos lembram outras personagens importantes da história do jornal. Dona Maura, a cozinheira, que servia 100 refeições por dia e hoje tem 78 anos, foi contemplada com texto à parte. Tostão, ou Sapo, um jornaleiro famoso na cidade, que gritava as manchetes verdadeiras e inventadas, é citado por diversos autores. Assim como a casa da Zezé, um dos mais afamados prostíbulos da capital, vizinha do jornal.

O JM funcionava num galpão imenso adaptado para redação, na Avenida Francisco Sales, 536, no Bairro Floresta. Mais tarde o galpão abrigou também a Rádio Jornal de Minas. A mão de obra foi recrutada na redação, com jornada de trabalho dupla. Isso lembra outro jornal mineiro, atual, que não inovou, nem em instalações, nem ao criar uma rádio.

Euro Arantes, um dos fundadores do famoso Binômio, foi o principal responsável pelos “áureos tempos” do JM, segundo Ronaldo Solha. No jornal do colaborador da repressão o ambiente era de liberdade, afirmam quase todos. E algumas atitudes desconcertavam aqueles que o identificavam com a extrema direita.

Como a edição do dia 6 de setembro de 1974, que circulou sem manchete, sem fotos e sem chamadas de capa, apenas com um editorial no qual comunicava ao leitor que o jornal não circularia no dia seguinte, a data cívica da Independência, em protesto contra as distorções que se cometiam “contra a emancipação política e econômica do povo mineiro”.

Seminário feminista

Outro episódio singular foi o patrocínio do jornal ao primeiro seminário feminista de Belo Horizonte, liderado por duas repórteres do jornal: Mirian Chrystus e Beth Cataldo. Mais curioso ainda é que o DCE da UFMG, na época presidido por uma mulher, tinha recusado a proposta das jornalistas de realizar o evento, em comemoração ao Ano Internacional da Mulher, 1975, sob o argumento de feminismo e movimento estudantil não combinavam.

Afonso Paulino bancou cartazes, livreto, transporte e hospedagem, no luxuoso Hotel Del Rei, de feministas que vieram de fora e tinham posturas de esquerda, como Teresinha Zerbini, líder do Movimento Feminino pela Anistia, e Branca Moreira Alves, irmã do ex-deputado Márcio Moreira Alves, estopim do AI-5.

A impressão que o livro passa é que muito mais ainda sobre o assunto pode ser escrito por cada um dos autores. Jornalista, bem treinado, quando não tem que seguir a forma jornalística, nem tem pretensão literária, costuma escrever muito bem. E os textos, mesmo quando sem alongam, como o de Charles Magno, são úteis e ricos em informações que, sem este livro, talvez se perdessem.

São os casos das campanhas contra a MBR – mineradora que transformava a Serra do Curral, símbolo de Belo Horizonte, no que é hoje, uma casca de montanha – e a Itaú – fabricante de cimento em Contagem que durante décadas lançou sua poeira nas casas dos moradores da cidade. Elas fizeram o jornal se destacar entre concorrentes que nunca tiveram a mesma ousadia editorial. E elevaram as vendas.

Paixão pela profissão

Da obra emerge não só o ambiente do jornalismo dos anos 70 e 80, mas uma paixão pela profissão que é difícil explicar e talvez só possa ser compreendida por quem é jornalista. O Jornal de Minas foi um jornal “diferente, moderno, avançado”, diz um dos autores. “Jornalismo é arrojo, ousadia, loucura e muitos sonhos.” E o bar era uma extensão da redação, onde se vivia o “jornalismo boêmio”.

No jornal que tinha como característica ter muitos estagiários, que trabalhavam de graça, ou quase, a jornada era de cinco horas, o JM não explorava jornalistas como se explora agora, compara no seu texto Márcia Lage. O salário saía, não em dia; atrasava três meses, quatro. O cheque saía às 15h55, cinco minutos antes do fechamento dos bancos. O pagamento vinha na forma de compras no armazém do jornal e vales, às vezes pagos pela repressão.

Isso ficou evidente quando uma notícia desagradou a polícia. Irritado, Afonso Paulino explicou que o jornal deixaria de receber o dinheiro para pagar os vales da semana. “Confessou, portanto, que a repressão era uma das fontes de receita do jornal. Só Deus sabe como”, escreve Charles Magno no seu texto.

Era época de ditadura e isso transparece em todos os textos, interferindo no trabalho profissional. A respeito disso, é valioso episódio vivido por Bernardo Carvalho como aspirante no CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva), narrada no livro. Vários textos, como o de Jurani Garcia, retratam o cotidiano do jornalista, bem menos glamoroso do que imagina o leitor, mas com atrativos que ajudam a explicar a paixão, quase vício, da profissão. A experiência de Mirian Chrystus retrata a angústia do jornalista que quer fazer matérias grandiosas e tem que cobrir buraco de rua.

Casos antológicos estão narrados no livro. Todos os autores buscaram lembranças singulares, marcantes, como Kid Moreira, o repórter policial que ficava acompanhando pela janela o atleta Juvenal dos Santos treinar na Alameda, o antigo campo do América, onde hoje existe om supermercado Extra.

Uma vez foi feita uma matéria com o alfaiate do ex-presidente JK em troca de dez ternos. Escrever horóscopo era tarefa de quem estava à toa. Nele se publicava o resultado do Jogo do Bicho, pois o caderno de cultura era patrocinado por um célebre bicheiro da capital. Jogavam-se peladas na redação, com bola de papel de telex colada com fita durex. O ambiente era de alegria e camaradagem.

Muitos extrapolaram o JM e escreveram verdadeiras memórias do jornalismo dos anos 70. Charles Magno, por exemplo, recorda sua trajetória profissional e passa pela sucursal do Jornal do Brasil em Belo Horizonte, na qual teve “o melhor chefe”: José de Castro. A tiragem do Jornal de Minas – esse mistério não só dele, mas de toda a imprensa mineira – não é mencionada no livro.

A entrevista com Afonso Paulino é um atrativo à parte do livro. Ela mostra um homem lúcido que não foge das perguntas embaraçosas, ataca políticos atuais, dá outra versão para o editorial de 1º de novembro de 1975 e faz até revelações sobre o episódio das bombas no Riocentro, no Rio de Janeiro, em 1981.

Encontro e livro

O livro começou a nascer no dia 17 de setembro de 2017, quando mais de 50 jornalistas do Jornal de Minas se encontraram no Bar do Maranhão, para comemorar os 90 anos de Adival Coelho, que foi chefe de redação do jornal. Valdez Maranhão, o dono do bar, trabalhou no JM como linotipista, motorista e fotógrafo; durante um tempo, quando chegou do seu estado natal, até morou no jornal. É também um dos autores do livro.

Edição bem cuidada, organizada por Fernando Horta Zuba, com revisão caprichada, ótimos projeto gráfico e diagramação, além de muitas fotografias, o livro é já uma obra fundamental da história do jornalismo mineiro.

Os 34 autores são: Adriana Kfouri Pereira, Afonso Celso Raso, Alair Ribeiro, Aloísio Morais, Amaury Pimenta de Pinho (Xisto), Bernardo Carvalho, Beth Cataldo, Beth Fleury, Carlos Herculano Lopes, Charles Magno Medeiros, Durval Guimarães, Eliane Machado, Fátima de Oliveira, Fernando Horta Zuba, Fernando Lana, Geraldinho Lopes, Geraldo Elísio (Pica-pau), Hermínio Prates, Iracema Amaral, José Carlos Aragão, Julieta Petruceli, Jurani Garcia, Kid Moreira, Lúcio Braga, Manoel Higyno dos Santos, Márcia Lage, Márcio de Ávila Rodrigues, Mirian Chrystus, Mirtes Helena Scalioni, Pedro A. L. Costa, Regina Armênio Pereira, Ricardo Camargos, Ronaldo Solha e Vadez Maranhão.

O livro foi publicado pela Páginas Editora, da jornalista Leida Reis e lançado no Sindicato no dia 8 de junho. Fernando Horta Zuba e Jurani Garcia editaram; Amaury Pimenta de Pinho, Jurani e Ronaldo Solha revisaram; Christiane Morais fez o projeto gráfico. Foram impressos 1.000 exemplares, parte paga com patrocínio, parte bancada por 30 autores. Um novo lançamento, em livraria, está sendo programado.

Jornal de Minas: Histórias que ninguém leu é livro de jornalistas, não de dono de jornal, nem de empresa jornalística. Certamente por isso tem a qualidade que tem. Memória coletiva. “Cada um escreveu o que quis”, contou Jurani. Um livro assim, interessante, bem escrito, bom de ler, quem mais poderia escrever, senão jornalistas? Está à venda no Sindicato por R$ 40. Vale muito mais do que isso.

[13/6/18]

6 COMMENTS

  1. Trabalhei com José Flávio Dias Vieira, um bom homem, era vive diretor e Afonso Raso diretor, senhor José Flávio foi dono de uma capacidade de redigir matérias com textos perfeitos não aceitava erros . Um belo ser humano que conheci.

  2. Quero muito o livro,como faço pra conseguir comprar,moro no interior,e sou filha de um dos citados no livro.

  3. Eu era a presidente do DCE em 1975 quando foi solicitada a cessão do espaço da sede cultural para o Seminário Feminista. Como o pedido de uso da sede para o evento veio acompanhado do pedido de NÃO participação da presidente do DCE, porque daria a ele uma conotação política, a diretoria decidiu pela não cessão.

    Hoje analiso que não foi uma decisão correta, o movimento tem autonomia e a sede cultural deveria ter sido cedida.
    O impedimento de minha participação foi cruel, mas o movimento deveria acontecer mesmo assim.

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